sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Ambientalismo de Oportunidade

Carlos Andreazza

Com capacidade de comunicação inferior à de Dilma Rousseff, o governo informou que vai — ou quer — extinguir uma reserva na Amazônia. Não que comunicar melhor tivesse efeito. Já ninguém mais ouvia. Neste país, é falar em exploração da Amazônia — é mencionar qualquer pretensão produtiva para a região — e pronto. Oh! Ah! Não! Não pode! Vão entregar aos chineses! Fora, Temer!

Neste país perturbado, não há hipótese de uma reserva — de algo nomeado reserva — não ser ambiental. Especialmente se na Amazônia. Falou-se em reserva, em manejar uma reserva — e: Oh! Ah! Não! Estão vendendo o Brasil! Este é o lugar mental em que estamos: o Parque Nacional Buraco da Indigência Intelectual. Nele, de dimensão continental, não existe obviedade. Lê-se algo fluorescente como Reserva Nacional de Cobre e Associados e só a raríssimos ocorre desconfiar de que talvez aquilo não seja uma reserva ambiental, de que talvez haja pormenores — variáveis — a respeito do território.

Que tal ler o decreto?

Não. A ordem unida prevalece. O sujeito escuta que é uma reserva, que fica na Amazônia, que tem 47 mil quilômetros quadrados, extensão equivalente à da Dinamarca, que vão lhe passar o trator, e fica imediatamente surdo para todo o resto, inclusive para a informação com a qual um indignado honesto pouparia o couro do bumbo: a Renca não é — nunca foi — reserva ambiental.

Mas o que é?

Chegarei lá. Antes, porém, é necessário afastar a histeria. Não sei se a Amazônia é mesmo o pulmão do mundo, mas a idealização sobre sua absoluta intocabilidade, para além de bafejar a falta de vocação brasileira para soluções equilibradas, venta os ares mais poluídos a que endinheirados, alguns dos quais notórios desmatadores em suas reservas particulares, à cata de expiar as culpas consumidoras, tenham as boas intenções manipuladas. Não faltam marinismos para tanto.

A fotografia é curiosa: o sujeito é incapaz de localizar o Pará no mapa, mas é ambientalista radical se o assunto é Amazônia. Até Gisele Bündchen — antiga manequim de casacos de pele, no pescoço de quem certamente vão pedras cuja procedência a proprietária ignora — bradou tuítes de indignação ambiental. Jogar para a galera é irresistível. Mas: quem leu o decreto?

Poucos assuntos serão mais ilustrativos do triunfo da idiotia entre nós do que o pretenso debate acerca da subitamente descoberta — e de súbito apaixonante — Renca. Pretenso porque debate não é. Não haverá debate onde uma parte comunica mal e a outra ergue bandeiras sem que seus agitadores conheçam a realidade contra a qual as deflagram. Isso tem outro nome: oportunismo — condição fundamental à imposição de agendas que nem raramente são as do brasileiro, inclusive o brasileiro amazônico.

Debate pressupõe honestidade intelectual; impõe algum nível comum de ciência. Contudo, a natureza própria à ignorância — o aterramento de nuances, a planície do desconhecimento, a transformação da pluralidade amazônica em uma Amazônia só — deriva numa desconcertante, diria imbatível, convicção do ignorante: quanto menos sabe sobre alguma coisa, mais tem certeza a respeito do que seja. Isso também tem outro nome: burrice — condição fundamental a que alguém, tanto melhor se célebre, torne-se massa de manobra para a cobiça de grupos de pressão.

Grita-se que a reserva virtualmente extinta se sobrepõe a áreas de proteção integral e a terras indígenas, mas a ninguém interessa ouvir que o status dessas não é — não poderia ser, por força de lei — tocado pelo fim da Renca. Berra-se que se trata de um Espírito Santo arreganhado à mineração, mas a ninguém interessa escutar que apenas 21% dessa porção poderão ser minerados, e que isso principalmente na forma de exploração subterrânea, menos danosa, ademais em zona já estabelecida como de uso sustentável. Não interessa. Tampouco interessa saber que aquilo não é um paraíso e que ali — sem o controle decorrente da extração profissional — multiplicam-se pistas de pouso clandestinas e núcleos, mais de mil hoje, de garimpo ilegal; esses, sim, devastadores. E há anos em atividade. Que artista deu pio?

Não lhes interessa o que a Renca realmente seja: uma reserva mineral, criada, em 1984, para assegurar que, quando quisesse, apenas o Estado brasileiro a pudesse explorar. Passados 33 anos, segundo o governo de turno, essa hora chegou — e, felizmente, com a clareza de que a exploração deve caber à iniciativa privada.

Há um ponto aqui.

Na fundação dos protestos, estão, mais urgente que a verdade, o compromisso político em rejeitar tudo quanto venha de Temer e, entranhadamente, o desprezo pela ideia de empresa privada. Entre os que protestam, pouquíssimos serão os genuinamente preocupados com o futuro — real — da região, ou estariam empenhados em conhecer opções sustentáveis de exploração. Porque a exploração é inevitável. Num país sério, aliás, teria lugar agora um debate sobre modelo regulatório e categorias de aproveitamento seguro do solo.

Não será desta vez. Mas ainda virá o dia em que o Brasil emergirá da puberdade para escolher entre ser o que querem que seja — um jardim botânico — ou uma nação capaz de cuidar de si e se mover, talvez até crescer, ao mesmo tempo.

Carlos Andreazza
Editor de livros

O Globo


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