quinta-feira, 18 de maio de 2017

Como a Venezuela chegou à beira do colapso

Max Fisher e Amanda Taub

Pelos números, a Venezuela parece um país atingido por uma guerra civil. Sua economia, que já foi a mais rica da América Latina, teria encolhido 10% em 2016, mais que a da Síria, segundo estimativas. Sua inflação nesse ano chegaria a 720%, quase o dobro do segundo pior lugar no mundo, o Sudão do Sul, o que torna sua moeda quase sem valor.

Em um país com as maiores reservas mundiais comprovadas de petróleo, o alimento tornou-se tão raro que três em cada quatro cidadãos relataram perda de peso involuntária, chegando a 9,5 kg por ano em média.

As ruas das cidades estão marcadas por mercados paralelos e pela violência. O último índice de assassinatos registrado, em 2014, foi equivalente, em 2014, foi equivalente ao número de baixas na guerra civil no Iraque em 2004.

Sua democracia, que há muito tempo era motivo de orgulho, tornou-se a mais antiga a despencar no autoritarismo desde a Segunda Guerra Mundial. Disputas por poder, mais recentemente para substituir a Constituição, levaram a protestos e repressão que mataram dezenas de pessoas só neste mês.

As democracias estabelecidas não deveriam implodir dessa maneira. Steven Levitsky, um cientista político da Universidade Harvard, disse que a Venezuela foi uma de "quatro ou cinco, em todos os tempos". Entre estas, nenhuma era tão rica ou caiu tanto. "Na maioria dos casos, o regime sai antes que a coisa piore de ta antes que a coisa piore de tal forma", disse ele.

A crise da Venezuela passou por uma série de etapas cujo progresso é claro em retrospectiva, e algumas das quais inicialmente se mostraram populares.

Um establishment bipartidário pronto para quebrar
Na fundação da democracia, em 1958, os três principais partidos do país, mais tarde reduzidos a dois, concordaram em compartilhar o poder entre si e a receita do petróleo entre seus eleitores.

Seu pacto, destinado a preservar a democracia, passou a dominá-la. As elites partidárias escolhiam os candidatos e bloqueavam os de fora, tornando a política menos administrável. O acordo para dividir a riqueza promoveu a corrupção.

Choques econômicos nos anos 1980 levaram muitos venezuelanos a concluir que o sistema estava preparado contra eles. Em 1992, militares de esquerda liderados pelo tenente-coronel Hugo Chávez tentaram um golpe de Estado. Fracassaram e foram presos, mas sua mensagem anti-establishment teve reflexos e projetou Chávez ao estrelato.

O governo instituiu uma série de reformas que se destinavam a salvar o sistema bipartidário, mas que pode tê-lo condenado. Um afrouxamento das regras eleitorais permitiu a entrada de partidos de fora. O presidente libertou Chávez, esperando demonstrar tolerância.

Mas a economia piorou. Chávez disputou a Presidência em 1998. Sua mensagem populista de devolver o poder ao povo lhe deu a vitória. Apesar disso, os dois partidos ainda dominavam as instituições do governo, que Chávez considerava antagonistas ou potenciais ameaças.

Chávez aprovou uma nova Constituição e expurgou o funcionalismo público. Algumas medidas foram muito populares, como a reforma judicial que reduziu a corrupção. Outras, como abolir o Senado, pareciam ter um objetivo mais amplo.

"Ele estava reduzindo os potenciais obstáculos à sua autoridade", disse John Carey, um cientista político do Dartmouth College. Por baixo da linguagem revolucionária, disse Carey, havia "uma engenharia institucional muito perspicaz”.

A desconfiança das instituições muitas vezes leva os populistas, que se consideram os verdadeiros defensores do povo, a se consolidar no poder. Mas as instituições às vezes resistem, levando a conflitos pequenos que podem enfraquecer os dois lados.

"Mesmo antes da crise econômica, você tem duas coisas que os cientistas políticos concordam que são as bases menos sustentáveis de poder, o personalismo e o petróleo", disse Levitsky, referindo-se ao estilo de governo que consolida o poder sob um único líder.

Quando membros do establishment empresarial e político objetaram a uma série de decretos executivos de Chávez em 2001, o presidente os declarou inimigos da revolução popular.

Como o populismo descreve um mundo dividido entre a população honesta e a elite corrupta, cada rodada de confronto, ao traçar linhas rígidas entre pontos de vista legítimos e ilegítimos, pode polarizar a sociedade. Os defensores e adversários de um líder como Chávez passam a ver uns aos outros como presos em uma luta de apostas elevadas, que justificam atos extremos.

Golpe agrava conflito além da ideologia
Em 2002, em meio à recessão econômica, a indignação contra as políticas de Chávez cresceu, levando a protestos que ameaçaram tomar o palácio presidencial.
Quando ele ordenou que os militares restaurassem a ordem, estes o prenderam e instalaram um líder provisório.
As mudanças de política externa de Chávez, aliando-se com Cuba e armando os insurgentes colombianos, tinham irritado alguns líderes militares. Sua guerra às elites passou a acarretar riscos.

Os líderes do golpe exageraram, dissolvendo a Constituição e o Legislativo, o que provocou protestos que rapidamente devolveram Chávez ao poder.
Mas sua mensagem de uma luta revolucionária contra inimigos internos não parecia mais uma metáfora sobre a redução da pobreza.
Carey chamou de "um momento muito polarizador" quando Chávez retratou a oposição como "tentando vender barato os interesses venezuelanos".

Ele e seus seguidores viam a política como uma batalha sem vencedor pela sobrevivência. As instituições independentes passaram a ser vistas como fonte de perigo intolerável. As licenças dos canais de mídia críticos foram suspensas. Quando os sindicatos protestaram, foram enfraquecidos por boicotes ou simplesmente substituídos. Quando os tribunais contestaram Chávez, ele os expurgou, suspendendo juízes inamistosos e enchendo a Suprema Corte com seus seguidores.

O resultado foi uma intensa polarização entre dois segmentos da sociedade, que agora se viam como ameaças existenciais, destruindo qualquer possibilidade de compromisso.

Transformando petróleo em lealdade
Pouco depois do golpe, Chávez enfrentou outra batalha que se mostraria igualmente crítica. Trabalhadores entraram em greve na empresa de petróleo estatal, Petróleos de Venezuela S.A., ou PDVSA, que há muito tempo ele denunciava por sua associação com as elites empresariais e os EUA. A greve ameaçou destruir a economia e a Presidência de Chávez. Mas também apresentou uma oportunidade de evitar mais uma rebelião.

Após a dissolução da greve, Chávez demitiu 18 mil funcionários da PDVSA, muitos deles técnicos capacitados e diretores, e os substituiu por cerca de 100 mil de seus seguidores. Grande parte do orçamento da companhia foi desviada para programas para a base política de Chávez, pagamentos a amigos do governo e subsídios para cumprir sua promessa de alimentos acessíveis.

Em 2011, US$ 500 milhões de um fundo de pensão da PDVSA acabaram em um esquema de pirâmide dirigido por financistas ligados ao governo, nenhum dos quais foi processado. Depois de se eleger com a promessa de esmagar a elite corrupta, Chávez acabara criando a sua própria elite.
Como companhia de petróleo, a PDVSA estava arruinada. A produção caiu apesar da alta global dos preços do petróleo. A taxa de gravidade, medida em horas-homens perdidas, mais que triplicou.

Em 2012 uma refinaria explodiu, matando pelo menos 40 pessoas e causando prejuízos de US$ 1,7 bilhão, sugerindo que até os orçamentos de manutenção tinham sido sifonados. Com suas reservas de dinheiro esgotadas e os projetos de desenvolvimento estagnados, a PDVSA, e por extensão a economia da Venezuela, ficou sem proteção quando os preços do petróleo caíram, em 2014.

Chávez tinha levado a Venezuela não apenas ao colapso econômico, mas também a uma crise política. Se seu apoio dependia dos subsídios ao petróleo, o que aconteceria quando o dinheiro acabasse?

Substituindo a inquietação urbana pelo caos urbano
O golpe de 2002 ensinou a Chávez que uma aliança de conveniência com grupos armados conhecidos como colectivos o ajudaria a controlar as ruas, onde os manifestantes quase o haviam derrubado.
Esses coletivos, com dinheiro e armas canalizados do Estado, tornaram-se policiais políticos. Os manifestantes aprenderam a temer esses homens que chegavam em motocicletas chinesas para dispersá-los, muitas vezes de forma letal.

Os coletivos cresceram em poder, desafiando a polícia pelo controle. Em 2005, expulsaram a polícia de uma região de Caracas, a capital, que tinha dezenas de milhares de moradores.
Embora o governo nunca tenha aprovado oficialmente essa violência, elogiava em público os coletivos, garantindo-lhes uma impunidade tácita. Muitos exploraram essa liberdade para participar do crime organizado.

Alejandro Velasco, um professor da Universidade de Nova York que estuda os coletivos da Venezuela, disse que mais tarde os grupos foram ampliados com criminosos "oportunistas" que souberam que "adicionar um pouco de ideologia a suas operações" poderia lhes garantir a impunidade.
A criminalidade e a ilegalidade floresceram, inchando os índices de assassinatos.

Liquidando a economia
O presidente Nicolás Maduro, que assumiu o poder quando Chávez morreu, em 2013, herdou uma economia em frangalhos e um apoio frágil entre as elites e o público. Em desespero, Maduro distribuiu os patrocínios. Os militares, com os quais ele tinha menos influência que seu antecessor, ficaram com o controle dos lucrativos comércios de drogas e alimentos, assim como a mineração de ouro.

Incapaz de pagar os subsídios e programas assistenciais, ele imprimiu mais dinheiro. Quando isso estimulou a inflação, tornando os produtos básicos inacessíveis, ele instituiu controles de preços e congelou a taxa de câmbio.
Isso tornou as importações proibitivamente caras. Empresas fecharam. Maduro imprimiu mais dinheiro e a inflação cresceu novamente. Os alimentos escassearam. A inquietação se aprofundou, e a sobrevivência de Maduro se tornou mais de a sobrevivência de Maduro se tornou mais dependente de benesses que ele não podia pagar. Esse ciclo destruiu a economia venezuelana.

Também agravou a violência na rua. Com as lojas do governo vazias, os mercados paralelos brotaram. Os coletivos, menos dependentes do apoio do governo, assumiram o comando da economia informal em certas áreas e ficaram mais violentos e difíceis de conter.

Maduro tentou restabelecer a ordem em 2015, empregando unidades de polícia e militares fortemente armadas. Mas as operações se tornaram "banhos de sangue", segundo Velasco. Muitos oficiais se transformaram em criminosos.

Nem democracia nem ditadura
O sistema político, após anos de erosão, tornou-se um híbrido de características democráticas e autoritárias --uma mistura altamente instável, segundo estudiosos. Suas regras internas podem mudar diariamente. Centros de poder rivais competem ferozmente pelo controle. Tais sistemas se mostraram com muito maior probabilidade de experimentar um golpe ou um colapso.

Maduro lutou para impor o controle, como muitas vezes fazem os líderes desses sistemas híbridos.

Sem as conexões pessoais de Chávez, ou seus bolsos fundos, Maduro tem pouca influência entre elementos autoritários dominados pelas elites militares e políticas. Como ele é altamente impopular, seu poder sobre as instituições democráticas pode ser ainda mais fraco. Depois que grupos de oposição conquistaram o controle do Legislativo, em 2015, a tensão entre os dois sistemas explodiu em um conflito total. A Suprema Corte, cheia de legalistas, brevemente te tentou dissolver os poderes do Legislativo. Neste mês, Maduro disse que poderá criar uma nova Constituição. O paradoxo da Venezuela, segundo Levitsky, é que o governo é autoritário demais para coexistir com instituições democráticas, mas fraco demais para aboli-las sem correr o risco do colapso.

Os manifestantes desceram às ruas, mas parecem num impasse com as forças de segurança e os coletivos. Francisco Toro, um cientista político venezuelano, disse que não está claro que lado os militares assumiriam se fossem chamados a intervir.

Com nenhum lado capaz de exercer o controle, pouco no sentido de uma economia ou ordem pública para controlar e um sistema político aparentemente incapaz de se romper ou dobrar, a Venezuela levou a si própria da riqueza e democracia à beira do colapso.

The New York Times

UOL Notícias
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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