sábado, 22 de abril de 2017

A insensatez da bilateralidade no comércio mundial

Martin Wolf
(*)

O Plano Marshall é encarado, corretamente, como uma das mais bem sucedidas ações de diplomacia econômica na História. No entanto, o dinheiro não era seu ponto mais importante. Em lugar disso, o mais importante foi que o plano permitiu que a Europa Ocidental, devastada pela guerra, deixasse para trás a bilateralidade no comércio internacional, que empobrece os dois lados.

O plano o fez ao pôr fim à escassez de dólares que motivava a ênfase em sistemas bilaterais de compensação de transações. Institucionalmente, isso foi conseguido por meio da criação de uma união de pagamentos europeia, integrada à Organização para Cooperação Econômica Europeia. Isso levou a conversibilidade nas contas correntes e mais adiante ao mundo do comércio multilateral liberal, que todos hoje aceitamos como uma constante.

Os nacionalistas econômicos que são influentes no governo de Donald Trump presumivelmente criticariam essa realização de seus predecessores. Preferem contas balanceadas bilateralmente a contas balanceadas multilateralmente, no comércio internacional; bilateralidade em lugar de multilateralidade, na política econômica; e exercício unilateral do poder dos Estados Unidos a uma cooperação institucionalizada.

Devemos ser gratos por as catástrofes dos anos 30 terem desacreditado os proponentes de visões nacionalistas e protecionistas igualmente estreitas. É horripilante imaginar o que teria acontecido caso essas pessoas tivessem exercido influência. Elas estavam desesperadamente erradas, então. E estão erradas hoje. Devem ser derrotadas. Nosso destino depende disso.
Em 1945, Howard Ellis, professor na Universidade da Califórnia em Berkeley, publicou um importante estudo sobre os perigos da bilateralidade, que então era a norma no comércio internacional. No estudo, ele concluiu que "a bilateralidade é, em muitos aspectos, a forma de restrição mais condenável imposta ao comércio internacional".

O que justifica essa afirmação? Considere o que nossas economias nacionais seriam se cada empresa tivesse de balancear compras e vendas com cada parceiro comercial. O processo seria insanamente dispendioso - na verdade, insano e só. O dinheiro existe para permitir uma divisão do trabalho imensamente mais complexa, e com ela o balanceamento do valor da renda diante dos gastos na economia como um todo.

O comércio internacional permite que a mesma coisa aconteça transnacionalmente, o que gera mais prosperidade, como afirma Richard Baldwin em "The Great Convergence". A troca da bilateralidade pela multilateralidade, quase 70 anos atrás, foi o ponto de partida para a explosão do comércio internacional que propeliu o crescimento mundial.
Em uma economia multilateral, balanços bilaterais não importam. É claro que limitações orçamentárias gerais ainda o fazem. Mas o fato de que eu esteja sempre em deficit com o supermercado mais próximo não deveria me preocupar (ou preocupar o supermercado), desde que eu não esgote os meus recursos totais.

Foi em boa parte por essa razão que a estrutura mundial da diplomacia do comércio foi criada para ser não discriminatória e multilateral. Ela também buscava combinar a liberalização do comércio internacional à conversibilidade cambial, inicialmente no nível de conta corrente.

Mas na construção desse regime mundial, existia igualmente a compreensão de que há uma diferença política importante entre comércio interno em um país e comércio entre países; este último envolve estrangeiros, sempre alvo de desconfiança. Assim, a melhor maneira prática de regular os compromissos relacionados ao comércio internacional era a reciprocidade. A combinação entre não discriminação e reciprocidade se tornou, desse modo, a fundação do regime de comércio internacional do pós-guerra.

Isso tudo é ótimo, dizem os nacionalistas atuais, mas o comércio internacional ainda assim não é balanceado. Alguns países registram vastos superavits e outros registram vastos deficit. Superavits são predatórios, e deficit são ruinosos. E isso precisa mudar, eles dizem. A bilateralidade, insistem, é a maneira certa de fazê-lo porque os desequilíbrios nas contas bilaterais se tornaram imensos, hoje.

É uma análise fortemente equivocada. Para começar, não existe maneira de assegurar comércio bilateral equilibrado a não ser por interferência constante - e constantemente variável - nas decisões de empresas privadas e indivíduos. De fato, o resultado de um sistema como esse seria uma economia planejada.

É ridículo que essa ideia seja proposta por um governo teoricamente dedicado à liberalização econômica. Segundo, a ideia se tornaria um jogo no qual, sempre que os Estados Unidos tentassem reduzir seu deficit com relação ao país A, provocariam elevação do deficit com relação ao país B ou C, porque a origem das importações seria desviada.

Terceiro, o resultado seriam regras de comércio internacional impossíveis de administrar, complexas e incertas. Se todos os membros da OMC (Organização Mundial de Comércio) regulamentassem seu comércio com cada parceiro bilateralmente, seria necessário que existissem mais de 13 mil acordos bilaterais de comércio internacional. Isso seria uma loucura. A abordagem destruiria todos os acordos existentes, criando o caos na política comercial.

Como aponta Stephen Roach, deficit e superávits em conta corrente são fenômenos macroeconômicos —um ponto que escapa aos assessores protecionistas de Trump. Os saldos positivos e negativos representam a diferença entre a renda agregada de um país e seus gastos, ou entre sua poupança e seus investimentos. Os chineses e os alemães gastam proporção menor de suas rendas, e os norte-americanos proporção maior. Roach argumenta que estes últimos deveriam ser mais prudentes, em lugar de jogarem a culpa nos estrangeiros.

Roach está certo, em termos gerais, mas não completamente. Se uma economia muito grande, como a dos Estados Unidos, elevasse substancialmente o seu nível de poupança interna, em um momento de taxas de juros mundiais tão baixas e de demanda tão fraca, isso causaria recessão mundial.

No passado, argumentei que os gastos insustentáveis dos norte-americanos propeliam a demanda mundial antes da crise financeira de 2007-2008. Nesse contexto, o excedente de poupança da China, Alemanha e alguns outros países é causa de preocupação mundial porque nos faltam maneiras de absorvê-lo em forma de investimentos produtivos e sustentáveis em outros lugares.

Assim, os desequilíbrios gerais são uma questão legítima de política pública, como argumentava John Maynard Keynes. Mas não há como resolvê-los por meio de acordos bilaterais. Esse caminho resultará em políticas ineficientes e gerará má vontade venenosa.

É necessário resolver a questão dos desequilíbrios multilateralmente, porque eles são um fenômeno multilateral. Além disso, seria muito mais produtivo tratar deles por meio de política macroeconômica e da conta de capital do que por meio do comércio internacional. A bilateralidade que o governo Trump hoje alardeia é uma ilusão. Não vai funcionar. Mas causará grandes danos. É necessário sepultá-la.

Financial Times
Tradução de PAULO MIGLIACCI 

(*) Comentário do editor do blog-MBF: 

Os nacionalistas econômicos que são influentes no governo de Donald Trump presumivelmente criticariam essa realização de seus predecessores.”

O pessoal que assumiu o controle do balanço de pagamentos dos EUA não afirmaram que são contra a multirateralidade e a favor da bilateralidade, e sim de que precisam por a casa em ordem.
A globalização da forma que estava sendo praticada, estava sendo favorável, e foi, apenas para os tigres asiáticos, que partiram do anonimato e chegaram ao topo, e para os acionistas das multinacionais.
O que adianta ao consumidor americano pagar barato por uma mercadoria de qualidade duvidosa, se não tem mais dinheiro para comprar, por estar desempregado ?
Por que os EUA deveriam continuar sustentando uma balança comercial totalmente desfavorável, com a venda de títulos públicos para os chineses ? Eles já possuem mais de 3 trilhões de dólares de títulos americanos. Um absurdo.

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