sábado, 3 de dezembro de 2016

A Revolução Húngara (1956)

Carlos I. S. Azambuja

A revolução húngara foi vencida devido à invasão do país pelo “exército mais poderoso do mundo” (segundo o autor do artigo, Cornelius Castoriades em seu livro “Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo”, editora Brasiliense). Mas, em 1817, a Comuna de Paris foi também abatida. E isso não impediu os revolucionários, até a metade do século seguinte, e ainda hoje, de celebrar o seu exemplo e discutir as suas lições.

Que o exército russo tenha esmagado a revolução húngara, isso explica, talvez, a menor ressonância nas camadas populares, mas não o silêncio sistemático dos revolucionários e dos intelectuais de esquerda. Ou será que as idéias deixaram de ser verdadeiras e válidas quando os tanques russos se põem a atirar sobre elas?

As coisas se tornam, todavia, mais claras quando se considera o conteúdo, o sentido e as implicações da Revolução Húngara. Pode-se, então, compreender este silêncio no que ele é: uma conseqüência direta do caráter radical dessa revolução, e uma tentativa de abolir a sua significação e a sua lembrança.

A sociedade moderna é uma sociedade de capitalismo burocrático. É na Rússia, na China e nos demais países que se fazem passar por “socialistas” que se realiza a forma mais pura, a mais extrema – a forma total do capitalismo burocrático. A Revolução Húngara de 1956 foi a primeira e, até o momento, a única revolução total contra o capitalismo burocrático total.

Durante dezenas de anos, os “marxistas”, os “intelectuais de esquerda”, os militantes, etc. discutiram – e ainda o fazem – sobre o caráter correto ou não da política stalinista, sobre as causas e a data exata do “Termidor” russo, sobre a natureza social dos regimes da Rússia e da Europa Oriental (Estados operários degenerados? Estados não operários degenerados? Estados socialistas com deformações capitalistas? Estados capitalistas com deformações socialistas?

Os trabalhadores e a juventude húngara pegaram em armas e colocaram, pela sua prática, um ponto final nessas discussões. Demonstraram por seus atos que a diferença entre os operários e o “Estado operário” é a diferença entre a vida e a morte; e que eles prefeririam morrer combatendo o “Estado operário” do que viver como operários num “Estado operário”.

Da mesma forma como o capitalismo fragmentado do Ocidente, o capitalismo burocrático total do Leste está cheio de contradições e dilacerado por um conflito social permanente. Essas contradições, esse conflito, periodicamente tomam uma forma aguda, e o sistema entra numa crise aberta. Ou bem a pressão da população explorada e oprimida pode até chegar à explosão, ou bem, antes que isso aconteça, a burocracia reinante pode tentar algumas “reformas”.

Os campos onde as contradições e conflitos são mais manifestos e mais marcantes são, naturalmente, os da economia e os da política. Caos econômico quase permanente consubstancial à “planificação” burocrática e que, mais profundamente, encontra suas raízes no conflito que a produção experimenta sem cessar, e repressão política onipresente, aparecem como os aspectos mais intoleráveis do capitalismo burocrático total. Aspectos fortemente interdependentes e mutuamente condicionados, é claro – e que são ambos o resultado necessário da estrutura social do sistema.

De fato, e por mais fantástico que isso possa parecer, o conjunto da esquerda internacional só enxerga aí taras secundárias ou defeitos passíveis de punição. Sebem que as “reformas” que os eliminassem preservando, no entanto, a substância do sistema (novo avatar da quadratura do círculo) seriam favoravelmente acolhidas no Ocidente pelos candidatos burocratas e seus ideólogos declarados ou mascarados – “socialistas”, comunistas “dissidentes”, e mesmo, atualmente, “ortodoxos”, na Itália, na França, etc; trotskistas, jornalistas “progressistas”; companheiros de luta, intelectuais de vários tipos, filósofos existencialistas de ontem, como Sartre e a equipe de “Temps Modernes”, pelos “economistas radicais” de hoje -.

Não é difícil compreender por que, e como, esses estranhos comensais foram mais ou menos unânimes no seu apoio a Gomulka, em 1956-1957, e na sua “oposição” à invasão da Checoslováquia em 1968, enquanto que, no que toca à Revolução Húngara, entregaram-se a calúnias vergonhosas (os “comunistas”), aprovaram a invasão final (Sartre), olharam de cima as ações “espasmódicas”, “elementares” e “espontâneas” dos trabalhadores húngaros (Mandel), ou se refugiaram no silêncio o mais rápido possível. Em 1956, o povo polonês não pegou em armas.

Apesar do seu desenvolvimento e da sua efervescência, os Conselhos Operários jamais questionaram de maneira explícita a estrutura do poder existente. O Partido Comunista conseguiu no essencial, ao preço de um pequeno expurgo em suas fileiras e de algumas mudanças de pessoal, controlar a situação durante o período crítico e sufocar assim, para acabar, o movimento de massa. As coisas foram ainda mais claras na Checoslováquia, em 1968, e os protestos da “esquerda” ainda mais turbulentos.

É que nesse caso, veja você, não havia nenhum perigo na realidade, nenhum sinal de uma atividade autônoma das massas. A nova direção do PC buscava introduzir algumas reformas “democráticas” e um certo grau de descentralização da economia. É evidente que a população só poderia ser favorável a essas medidas. Uma reforma vinda de cima e com o apoio do povo, que sonho maravilhoso para os “revolucionários” de hoje. Como diria Mandel, isso “teria permitido a milhões de operários a se identificarem com o novo Estado Operário”.

Em tais circunstâncias é, evidentemente, permitido gritar contra os tanques russos. Mas na Húngria o movimento de massas foi tão poderoso e tão radical que em alguns dias pulverizou literalmente o PC e todo o aparelho de Estado. Nem mesmo a “dualidade de poder”: tudo o que subsistia como poder estava nas mãos da juventude armada e dos Conselhos Operários. O “programa” dos Conselhos Operários era absolutamente incompatível com a conservação da estrutura burocrática da sociedade.

Ele exigia a autonomia das empresas, a abolição das normas de trabalho, a redução drástica das desigualdades de rendimentos, o comando sobre os aspectos gerais da planificação, o controle da composição do governo e uma nova orientação da política exterior. E tudo isso foi combinado e formulado claramente no espaço de alguns dias. Nesse contexto, seria ridiculamente fora de propósito levantar que tal ponto destas reivindicações seria “obscuro” ou “insuficiente”.

 Se a revolução não tivesse sido massacrada pelos assassinos do Kremlin, seu desenvolvimento teria chegado “aosesclarecimentos” e aos “aperfeiçoamentos” necessários: os Conselhos e o povo teriam dado ou não a prova de que eles podiam encontrar neles mesmos a capacidade e a força de criar uma nova estrutura de Poder e uma nova instituição da sociedade.
Ao mesmo tempo, a Revolução liberaria, desencadearia todas as forças e todas as tendências da nação húngara.

 A liberdade de expressão e de organização para todos, não importando as opiniões políticas de cada um, foi imediatamente considerada como uma decorrência normal. Era igualmente evidente que diversos representantes da ”humanidade progressista” só podiam considerar isso como intolerável. Para eles, a liberdade de expressão e de organização era o sinal do caráter “impuro”, “amalgamado”, “confuso” da Revolução Húngara.

Apesar de sua vida curta, a Revolução Húngara colocou, como princípios, formas organizacionais e significações sociais que representam uma criação institucional social-histórica. A fonte dessa criação foi a atividade do povo húngaro: intelectuais, estudantes, operários. Em vez de contribuir ao menos um pouco para essa revolução, “teóricos” e “políticos”, enquanto tais, continuaram a levar ao povo a mentira e a mistificação.

Certamente, os intelectuais desempenharam um papel positivo importante, pois, vários meses antes da explosão final, eles se empenharam em “demolir” os absurdos “políticos”, “ideológicos” e “teóricos” que permitiam a burocracia stalinista apresentar sua ditadura totalitária como uma “democracia popular”, como o “socialismo”.

Finalmente, poder-se-ia perguntar por que o imperialismo capitalista pode, na maior parte do tempo, suportar a liberdade de expressão, e por que o imperialismo “socialista” não pode tolerá-la um só instante.

Carlos I. S. Azambuja
Historiador

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