quinta-feira, 10 de março de 2016

Mais imposto, mais controle, mais burocracia

JOÃO GERALDO PIQUET CARNEIRO

Por mais inacreditável que possa parecer, o Brasil figura hoje na humilhante condição de um dos países mais burocratizados do mundo. É o que consta do relatório do Banco Mundial sobre obstáculos ao crescimento: "Doing Business in 2005". O que terá ocorrido?

Afinal, o Brasil foi pioneiro em reformas administrativas na América Latina, a primeira delas há cerca de 70 anos. Na década de 40, uma plêiade de administradores admitidos em concurso público nacional implantou os primeiros institutos de previdência, fazendo escola de boa gestão nas autarquias então dotadas de autonomia gerencial e financeira (muito parecidas com as atuais agências reguladoras).

Nos anos 50, o BNDES, outro celeiro de competências, preparou o país para o primeiro grande salto rumo ao desenvolvimento industrial. Essas mesmas elites modernizaram o Banco do Brasil, criaram o Banco Central, a Petrobras e a Companhia Siderúrgica Nacional. Estiveram presentes, em 1962, na extraordinária experiência de reforma do Estado da Guanabara. Em 1967, o decreto-lei nº 200 - ainda atualíssimo -- adotou como estratégia nuclear do processo de reforma a descentralização administrativa. Para se ter idéia de quão pioneiros fomos, somente nos anos 80, sob o governo de François Mitterrand, a França veio a se empenhar para valer na descentralização da administração pública.

Os ventos políticos sopraram na direção do autoritarismo, mas o ímpeto reformador não arrefeceu na administração pública brasileira. Em 1979, ainda em pleno governo militar, criou-se o Programa Nacional de Desburocratização, sob a direção de Hélio Beltrão, voltado para a simplificação administrativa, o tratamento diferenciado das pequenas empresas, a simplificação das Juntas Comerciais, o acesso dos pobres à Justiça e o combate sistemático às formas centralizadas de gestão pública.

Em 1984, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Microempresa e o Juizado de Pequenas Causas - ambos elevados em 1988 à condição de mandamentos constitucionais. Sem exagero, o Brasil precedeu em mais de uma década o programa americano de desburocratização, o "Reinventando o Governo" (Reinventing Government), lançado pelo presidente Bill Clinton em 1993.

Poucos países terão constituições tão minuciosas quanto a brasileira na enunciação dos direitos individuais e coletivos. As eleições são livres, a imprensa é livre, os três poderes da República são independentes e funcionam regularmente.

Enquanto isso, a administração pública continuou a se modernizar com a unificação dos orçamentos, a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e a estabilização da moeda. Não obstante, no meio do caminho permitiu-se o estrangulamento burocrático da cidadania: a Justiça é lentíssima, a mentalidade cartorial viceja, o papelório -- agora dissimulado por meios eletrônicos -- não pára de crescer, o Fisco aterroriza o contribuinte.

O relatório do Banco Mundial só trata dos entraves ao desenvolvimento das atividades econômicas. De fato, a criação de uma empresa, desde o seu registro até o efetivo funcionamento, consome 155 dias - mais que o dobro do que se verifica nos demais países da América Latina e do Caribe e seis vezes mais do que a média dos países da OCDE.

Para fechar uma empresa são necessários dez anos, três vezes mais do que no resto da América Latina e seis vezes mais do que nos países desenvolvidos. Os empecilhos burocráticos à exportação e à concessão de licenças ambientais, o excesso de controles fiscais acessórios, assim como a enervante demora no registro de patentes são objeto de queixa permanente de empresários e até de ministros.

Ocorre que esse mesmo processo de burocratização atinge de forma insidiosa o elo mais fraco da relação com o Estado -- o cidadão brasileiro, especialmente o pobre, submetido a controles, encargos fiscais, cadastramentos e recadastramentos, firmas reconhecidas e alvarás nas três esferas de governo. Quase todas essas exigências, abolidas antes de 1985, foram restabelecidas com vigor renovado e sem nenhuma sutileza. Assim, regredimos ao estágio em que o cidadão é tratado como súdito da burocracia governamental, desprezando-se o truísmo republicano de que "serviço público significa servir ao público". E quem não tiver computador e acesso à internet sequer terá condições operacionais de atender ao que o Estado lhe determina.

Tal retrocesso é convencionalmente explicado como a prevalência da velha cultura ibérica, do patrimonialismo, do vezo centralizador da metrópole sobre os impulsos reformistas de uma pequena elite de abnegados. Somos portanto escravos do passado colonial. Ora, essa explicação não resiste à mínima análise histórica e encheria de indignação os modernos portugueses e espanhóis que não só conquistaram a duríssimas penas a democracia política mas também enquadraram a burocracia estatal.

Na realidade, o que ocorreu no Brasil foi o encontro perverso da cultura centralizadora subjacente da administração pública com a necessidade de reequilíbrio das contas públicas devastadas pela crise fiscal.

O interminável ajuste fiscal privilegiou o aumento da receita tributária em detrimento da qualidade do gasto. Da mesma forma que a inflação duradoura corroeu a base moral da atividade econômica, a política tributária terminou por se tornar antidemocrática, na medida que o extrativismo exacerbado (tal como no Brasil Colônia) passou a ser um fim em si mesmo.

A justiça fiscal, outro valor republicano, foi desprezada em favor do aumento contínuo de arrecadação (federal, estadual e municipal). O administrador fiscal, cujo desempenho é avaliado por sua capacidade de aumentar a receita, terminou por render-se ao imediatismo, criando novas formas de tributação cada vez mais complexas e herméticas. Sempre mais imposto, mais controles, mais certidão negativa e, portanto, mais burocracia. Nesse ritmo, logo voltará a ser exigida certidão negativa para se sair do país.

A perda do referencial democrático na relação do cidadão-contribuinte com o Estado está na raiz do surto de burocratização dos últimos 15 anos. Portanto, nenhum esforço sério de desburocratização terá êxito se não houver consciência de que o que está em jogo não é apenas a saúde da economia ou o superávit fiscal mas, isto sim, a qualidade do regime democrático. A questão é essencialmente política, e o governo do presidente Lula tem a obrigação histórica de enfrentá-la.

JOÃO GERALDO PIQUET CARNEIRO
Advogado e presidente do Instituto Hélio Beltrão.

29/09/2004.

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