domingo, 31 de janeiro de 2016

Reencarnação como expressão maior da justiça

Federação Espírita do Paraná

“A doutrina da reencarnação é a meu ver a maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é oportunidade de evolução.”

A afirmação é do jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça (2002); professor titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo (USP); Secretário de Administração do Estado de São Paulo (governo de Mário Covas Jr. – 1995/2001); Secretário de Segurança Pública do Estado (governo Franco Montoro – 1983/1987), entre outros títulos, além de escritor e membro da Academia Paulista de Letras.

Com doutorado pela mesma USP em 1971, o professor Reale Júnior foi autor de texto publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 3 de janeiro de 2009, no qual, sob o título “Razão e religião”, expôs as mudanças conceituais de Cesare Lombroso, cujo centenário de desencarnação ocorre em 2009, provocadas pelo estudo do Espiritismo. Lombroso notabilizou-se pela formulação da hipótese de que o criminoso seria fruto de um atavismo, demonstrado em suas feições físicas.
Na entrevista, Miguel Reale Júnior revela que frequenta reuniões mediúnicas há 30 anos; dá dados e raízes familiares em torno do meio, outras de ordem política e fala de sua atuação no campo do direito e especificamente da luta para levar a justiça a maior número de brasileiros.

“Venho lutando para se dotarem os presídios de oficinas de trabalho, a fim de que o preso possa sentir que, se perdeu a liberdade, não perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho”, diz. Acrescenta que:
“A evolução espiritual não encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do cão, dos chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de Execução Penal são apenas “para inglês ver”.

O senhor mostra em seu artigo ter uma leitura acurada dos livros de Allan Kardec, com expressões típicas, como livre-arbítrio e determinismo. Como e por que se deu esse interesse?
Posso dizer que tenho grande interesse religioso. A história das religiões e as religiões em geral são objeto de minhas indagações. O meu interesse pelo Espiritismo e por Kardec, que conheço apenas pela rama, vem desde a juventude. Meu interesse pelo Espiritismo nasceu pelo exemplo de meu avô materno, o engenheiro José Pucci, que realizava sessões de mesa branca em sua casa da Avenida Paulista. Sua morte, aos 98 anos, foi uma lição. Certa manhã, pediu para ser inteiramente despido. Logo que estava sem roupa, sorriu e disse que iria morrer como nascera. Em seguida faleceu.

Na troca de correspondência virtual que mantivemos, o senhor revela “ter continuamente experiências que firmam minha convicção”. Poderia nos aclarar quais são essas experiências?
Há 30 anos frequento regularmente a casa de uma senhora já com seus 80 anos, na Mooca, extraordinária pessoa e médium que recebe Espírito integrante de corrente liderada pelo Espírito de um jovem tenente da Força Pública de S. Paulo.
Tenho por padrinho espiritual a figura de eminente e combativo homem público e jurista brasileiro falecido no primeiro quartel do século passado.
Tenho tido experiências reveladoras e mesmo comoventes.
Ademais, recebi, anos atrás, de amigo penalista de Curitiba o aviso para se possível visitar a Instituição Lar Escola Doutor Leocádio José Correia, do Dr. Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas. Lá estive em três oportunidades, tendo tido a possibilidade de ser atendido pelo médium Dr. Maury e me aconselhado com o Dr. Leocádio.
Em Brasília, estando à frente do Ministério da Justiça, estive no centro espírita no qual atendia o ministro general Cardoso (1), que como médium recebia o Espírito de um médico. O general Cardoso, quando de minha saída, em vista do recuo do presidente quanto à intervenção no Estado do Espírito Santo (2), prestou-me aberta solidariedade.

O senhor tem defendido uma democratização da justiça, de modo a fazê-la chegar a amplas camadas da população. Como se trata de um princípio de igualdade, quais os principais obstáculos para se avançar mais rapidamente nesse objetivo?
A maior dificuldade está na falta de sensibilidade e de vontade política. Os caminhos para uma Política Criminal de cunho social estão traçados. Sugerimos vários programas em nosso Diagnóstico do Sistema Criminal Brasileiro elaborado a pedido do Ministério da Justiça em 2000. Quando no ministério, em minha rápida passagem em 2002, deixei prontos para serem implementadas iniciativas como criação de plantões sociais nas delegacias de polícia, com a presença de estagiários de psicologia e de serviço social. O programa seria financiado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria). Saí e nada foi feito pelo meu sucessor, nem por Márcio Thomaz Bastos, ao qual dei toda a indicação do programa, denominado Indústria da Paz.

Outro programa consistia na união de esforços dos ministérios da área social, na transformação das escolas em centros de convivência, nas regiões pobres das grandes cidades. Houve por nossa iniciativa a primeira reunião dos ministros da área social. Saíram entusiasmados. Logo depois deixei o ministério e a ideia morreu.
Hoje me dedico à assistência às mulheres vítimas de violência sexual. O nosso escritório dava assistência jurídica às mulheres atendidas pela Casa da Mulher, instituição da Escola Paulista de Medicina. A Casa agora fechou por serem encaminhadas as vítimas exclusivamente ao hospital Pérola Bayton.
Tentamos apoio do governo federal para assistir às 200 mulheres que mensalmente se apresentam no hospital. Foi considerado irrelevante o programa.
Muito pode ser feito com pouco dinheiro. Mas, repito, falta vontade política, até mesmo para o crescimento e fortalecimento da Defensoria Pública.

O sistema judiciário e prisional carrega ainda a tendência da simples aplicação da penalidade ao agente do crime. Sob os aspectos social e espiritual, aqui no sentido espírita, aberto ao crescimento do Espírito, a punição sem educação resolve o problema da Sociedade?
Como um dos autores da Lei de Execução Penal e presidente da comissão que elaborou uma proposta de modernização da lei, venho lutando para se dotar os presídios de oficinas de trabalho a fim de que o preso possa sentir que, se perdeu a liberdade, não perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho. Outro ponto essencial e muito descurado é a assistência ao egresso. Em uma semana em liberdade, sem acolhida e auxílio, desfaz-se todo o possível esforço de ensino, trabalho, e de eventual assistência social, psicológica ou religiosa. Daí ser importante a ação dos patronatos, também prevista na Lei de Execução Penal.
A punição não promove o crescimento e a mudança, que devem partir do próprio condenado, mas desde que lhe sejam abertos os caminhos para sua decisão de palmilhá-los. A evolução espiritual não encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do cão, dos chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de Execução Penal são apenas “para inglês ver”.

As conclusões de Cesare Lombroso, na segunda fase de sua vida, praticamente desfazendo o peso do atavismo no criminoso, têm sido consideradas nos julgamentos forenses?
Os resquícios do critério de periculosidade foram em grande parte eliminados na Nova Parte Geral do Código Penal, de cuja elaboração participei.
O Código Penal de 1.969, revogado antes de entrar em vigor, trazia a figura do criminoso por tendência. Mantém-se a figura no Código Penal Militar, mas na prática sem efetividade. A periculosidade, no entanto, retornou com a criação do Regime Disciplinar Diferenciado, que enclausura o condenado e constitui um regime enlouquecedor. Os aspectos antropológicos, no entanto, não são mais levados em conta. Faz-se apenas um juízo de periculosidade real consistente na probabilidade da prática de delitos no futuro, em uma avaliação livre com elevada discricionariedade.

“Nos tempos de barbárie são os mais fortes que fazem as leis e eles as faziam para si. (…) As leis humanas são tanto menos instáveis quanto mais se aproximam da verdadeira justiça, isto é, à medida que são feitas para todos e se identificam com a lei natural” (O Livro dos Espíritos). À luz do direito contemporâneo, o senhor identifica progressos na legislação ou ainda há muito caminho a ser percorrido?
No campo penal há o que se denomina “expansionismo penal”, criminalizando-se condutas sem maior relevo, pois o Direito Penal não mais visa proteger bens jurídicos, buscando apenas determinar condutas de modo simbólico, transformando-se em um direito de ordenação, despreocupado em se limitar à tutela de valores fundamentais. A desobediência a regras de interesse da Administração passa a ser crime. Vulgariza-se a incriminação em uma sociedade sem controles informais (família, escola, igreja, sindicato, vizinhança). O Direito Penal passa a ser a tábua de salvação de uma sociedade sem exemplos, sem limites. O Direito Penal regride.

A 3ª Parte de O Livro dos Espíritos, enfocando as chamadas Leis Divinas ou Naturais, é apontada por pensadores espíritas como uma excelente proposta de jusnaturalismo (3), onde Allan Kardec amplia o conceito de Direito Natural dando-lhe uma dimensão transcendente, a partir do pressuposto da imortalidade do Espírito. Até que ponto lhe parece que o aprofundamento dessa reflexão poderia enriquecer o estudo da Filosofia do Direito, nos dias de hoje?
Tenho uma posição historicista dos direitos humanos, mas não relativista. Pode-se dizer com Kardec: “A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela pouco a pouco”. Os Direitos do Homem, desde 1.789, foram ganhando foro de verdade. Parece hoje que são revelados, mas foram conquistados e se inserindo em nossa consciência em um processo evolutivo. A questão atual não é falta de declaração dos direitos, constantes tão claramente do art. 5° de nossa Constituição, e sim de dar efetividade aos mesmos. Acrescidos no processo histórico à consciência dos homens transformaram-se na expressão de meu pai em “invariantes axiológicas”.

Quando Allan Kardec indagou de seus interlocutores espirituais qual seria o principal fundamento da teoria da reencarnação, estes lhe responderam ser a Justiça. Admite o senhor que a tese da reencarnação, hoje expressamente repelida pelo Cristianismo, pode melhor se adequar aos anseios humanos da efetiva concretização da justiça e trazer uma visão menos catastrófica acerca do futuro da sociedade humana?
A doutrina da reencarnação é a meu ver a maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é oportunidade de evolução. Seria injusta a condenação eterna por atos praticados em uma vida plena de carências. Dar ao Espírito a possibilidade de aprimoramento em situações diversas e experiências múltiplas me parece uma justa busca de justiça.
O senhor foi transparente no trato da colaboração espírita, enquanto coadjuvante no diagnóstico do criminoso. Não receia, com isso, ser vítima do preconceito?
Nesta altura da vida, com 40 anos de docência, não temo preconceitos. Como disse, a Sociedade é adepta de largo sincretismo. Isto não impede manifestações raivosas, como algumas que recebi de pessoas ligadas à Igreja.

NOTAS DO PENSE
(1) Referência ao general Alberto Cardoso, ex-ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).
(2) A intervenção foi solicitada por unanimidade pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, com anúncio em contrário, do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, por orientação do chefe do governo. O motivo do pedido de intervenção visava o enfrentamento ao chamado crime organizado no Estado do Espírito Santo. Com a negativa, Miguel Reale Júnior pediu exoneração, após cerca de quatro meses, do cargo de Ministro da Justiça.
(3) O mesmo que direito natural (em latim lex naturalis) ou jusnaturalismo. Trata-se de uma teoria que postula a existência de um direito cujo conteúdo é estabelecido pela Natureza e, portanto, é válido em qualquer lugar.




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