quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Crise e Constituição

Jessé Torres

A síntese que mais se ouve de brasileiros que retornam de temporadas na América do Norte é a de que “lá tudo funciona”, o oposto do que se vê na América do Sul. Um complexo de causas e fatores contribui para esse resultado. Mas não seria exagero dizer que todos brotam da mesma raiz: a estabilidade dos valores consagrados na Constituição americana, que é a mesma, com menos de 30 emendas, desde o século XVIII. O Estado brasileiro está na oitava Constituição. A última das quais com quase cem emendas, instabilidade que retrata e alimenta crises recorrentes.

O desenho das constituições de estados que se pretendam democráticos deve resposta a três perguntas: como reconhecer e hierarquizar os valores tidos como fundamentais pela sociedade?; qual o teor de consentimento que é necessário para alterarem-se tais valores?; qual a forma de expressão idônea desse consentimento? Entendendo-se como Estado democrático aquele em que o governo é instituído com poderes derivados do consentimento dos governados.

A Constituição americana só pode ser modificada com consentimento de dois terços do Congresso e de três quartos dos estados da federação. Isso não significa um antídoto infalível contra a tirania da maioria, porém ajuda a prevenir a tirania das minorias oligárquicas ou das maiorias rasas e oportunistas, aristocráticas ou populistas.

A crise que ora se apresenta aos olhos do povo brasileiro nada mais é do que o resultado de respostas insatisfatórias àquelas três perguntas: o povo, desinformado ou mal formado, não se une em torno de valores que reconheça como fundamentais. Se falta o consenso ético, torna-se precário qualquer modelo de alteração do consentimento nacional para respeitarem-se ou alterarem-se tais valores; a prevalência de tal ou qual pauta é contingente e sujeita à engenharia de maiorias eventuais e comprometidas com interesses egoísticos, se não escusos ou ocultos, ou ocultos porque escusos.

Como consolo (?!), recorde-se que interesses egoísticos acompanham a natureza humana em qualquer tempo. Basta recordar que Thomas Lefferson escreveu, na Declaração de Independência das colônias americanas, que todos os homens são criados iguais, titulares de direitos inalienáveis, entre os quais a liberdade e a busca da felicidade, e que, por isso mesmo, sempre que qualquer governo se torne deles destrutivo, é direito do povo substituí-lo por outro que os respeite. Mas Jefferson, contam os historiadores, acordou com seus pares a permanência da escravidão como manifestação legítima do direito de propriedade protegido pela Constituição, sendo, ele próprio, dono de escravos.

A Constituição deve transparecer um pacto consistente ou uma esperança manipulável? Que a nossa venha a estabilizar os valores da nacionalidade e da convivência, consciente e sem exclusões. E, então, tudo, ou quase tudo, poderá vir a funcionar bem nas relações entre a sociedade, o estado e os poderes constituídos, que a cumprirão e farão cumprir.

Jessé Torres Pereira Júnior
Desembargador e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

A Voz do Cidadão


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