sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Há 200 anos a esquerda tenta entender o que é o mercado. Não tem problema: nós explicamos.

Rodrigo da Silva

Vai dizer que você nunca ouviu essa história por aí, em qualquer discussão política onde a expressão livre mercado insiste em aparecer: liberais são utópicos e ingênuos porque acreditam que o mercado é bonzinho. Ora, empresários são mesquinhos e estão interessados apenas em ganhar dinheiro, não é mesmo? Por que raios alguém acreditaria que um pobre tem algo a ganhar num cenário onde a livre concorrência impera? Os mais pobres serão engolidos nessa selvageria onde cada um é dono do seu próprio nariz, dizem. Além disso, os mais pobres precisam ter acesso à educação e à saúde. Alguém acredita realmente que o tal do mercado está interessado nesse negócio?

Quase sempre o caminho oferecido ao combate dessa ingenuidade latente liberal é a crença de que políticos estão plenamente interessados em atender os interesses dos mais pobres – ou então, a estabelecerem um cenário onde os mercados funcionam com justiça, seja lá o que isso signifique. Políticos são como divindades abençoadas que dedicam suas vidas ao mais desprendido altruísmo. A ideia funciona da seguinte maneira: você pega compulsoriamente quase metade daquilo que um pobre tem como fruto de seu trabalho, e entrega para algumas figuras de terno e gravata que prometem mundos e fundos num determinado período a cada quatro anos, acreditando que elas estarão interessadas em defender seus interesses melhor do que eles mesmos – e não apenas dedicando cada segundo de suas vidas a sustentar suas posições de poder e a de seus financiadores, em geral grandes empresas interessadas em utilizar de seus serviços para concentrar poder econômico. É como se de tempos em tempos você escolhesse o gerente do seu banco e lhe confiasse retirar todos os meses quase metade do que você ganha para gastar em seu nome em coisas para você mesmo, permitindo a ele retirar boa parte desse dinheiro apenas para sustentar a intermediação desse processo. Exatamente como se fosse um desses investimentos estúpidos que você não tem como se livrar.

E isso ainda não conta tudo que acontece por trás dessa história. Você colocará também essas mesmas pessoas de terno e gravata para criar leis e medidas que protejam os grandes empresários – aqueles mesquinhos do começo da história – a não lidarem com concorrência, afinal de contas você não quer um cenário de livre mercado, não é mesmo? É exatamente pra isso que a grande burocracia brasileira funciona: proteger os mais ricos da entrada dos mais pobres no mercado. As papeladas e boletos, afinal, funcionam como um tormento incomparavelmente menor para aqueles que preenchem o topo da pirâmide em comparação aos que estão na base, muitas vezes condenados à informalidade empreendedora – e com ela à insegura que sepulta muitos negócios promissores. O protecionismo aqui não significa outra coisa que não seja proteger as grandes empresas que já chegaram lá e condenar os mais pobres a desistirem da possibilidade de ascender socialmente através das ferramentas de mercado que ascenderam os mais ricos.

Ok, mas isso tudo não prova que o mercado é bonzinho”, você deve estar pensando. E você tem razão. Só tem um problema: não existe esse negócio de bem ou mal na natureza do mercado. Assim como não passa de papo furado essa estória de deus mercado. Carlos Fuentes, um dos grandes romancistas da literatura mexicana do último século, criticava o fundamentalismo econômico dos liberais, “com sua convicção religiosa de que o mercado, deixado aos seus próprios mecanismos, é capaz de resolver todos os nossos problemas”. Harvey Cox, um dos mais influentes teólogos dos Estados Unidos, professor em Harvard, diz que para os crentes do liberalismo o mercado é feito uma divindade, “no mistério que o envolve e na reverência que inspira”. Como Deus, na visão de Cox, para os liberais ele é “onipotente (possui todos os poderes), onisciente (possui todo o saber) e onipresente (existe em todos os lugares)”, com atributos que “nem sempre são completamente evidentes para os mortais, mas deve-se acreditar neles e afirmá-los pela fé”.

Não, não se deve. No mercado não existe nenhuma divindade, fé, bem ou mal. Mercados funcionam através de instituições econômicas. Sem mágica. Não é como se houvesse homens usando chapéu-coco com os pés apoiados em mesas de mogno, jogando banco imobiliário. Não existe uma mente brilhante ou perversa por trás, julgando e condenando a bel-prazer. O mercado é um tecido social onde as pessoas realizam trocas. Nesse tabuleiro, eu, você ou aquele seu amigo barbudo comunista, traçamos o rumo daquilo que queremos. As moedas facilitam esse processo. Os preços guiam o melhor racionamento de todas as coisas que existem no mundo. No fundo, o mercado é uma invenção humana, com imperfeições humanas, criado para lidar com um fato incontestável a respeito da natureza: a certeza de que, longe da infinitude do divino e das promessas abundantes e irresponsáveis do universo político, o mundo material é limitado pela escassez. Nada dura para sempre, não existe tal coisa como produtos ou serviços ilimitados. Guiados por tal limitação, os seres humanos desenvolveram uma ferramenta que possibilitasse razão ao uso dos bens materiais. E o nome dela é mercado.

E aqui, nós fazemos escolhas. O tempo todo. Quando você decidiu colaborar livremente para financiar o projeto dessa página (e você pode fazer isso clicando nesse link), implicitamente escolheu não gastar o seu dinheiro com outra coisa. Quando foi levado a abrir esse texto e dedicar os minutos que o levaram até a exata leitura dessa frase, fez o mesmo com outro bem escasso e precioso seu: o tempo. Essas decisões acontecem o tempo todo ao redor do mundo. Bilhões de pessoas, todos os dias, trocam sua força de trabalho por mordidas em sanduíches, baforadas de perfume, pisões em sapatos de couro. 

Outras tantas, sem qualquer julgamento moral do mercado, fazem o mesmo com crucifixos e livros religiosos, parcelam brinquedos eróticos no cartão de crédito, se embebedam com cerveja barata. O mercado premia pessoas que servem pessoas – e se engana quem pensa que isso acontece através da tal da meritocracia (mas esse é assunto para outro texto, que você receberá em primeira mão nos próximos dias caso tenha exercido a livre decisão de curtir a nossa página; e você pode fazer isso clicando aqui).

Nesse imenso tecido de trocas, são as pessoas que criam os ideais do que é bom ou ruim – não o sistema. No mercado, você pode escolher adquirir marcas simplesmente porque elas apoiam o casamento gay, combatem o racismo, questionam o papel da mulher na sociedade ou defendem os interesses dos animais. Você pode fazer tudo isso ao mesmo tempo em que realiza boicote ou pressiona outras marcas a seguirem pelo mesmo caminho – algo estupidamente comum nos últimos tempos. Pode criar produtos de nicho para atender demandas de grupos esquecidos. Pode utilizar dos produtos dispersos pelo mercado para propagar discursos contra o próprio mercado. No fim, guiado por incentivos econômicos – o bom e velho interesse pelo lucro – você provavelmente será condicionado dentro desse sistema indisposto ao julgamento à tolerância em relação à diferença. Como diz Robert Wright:

Uma das muitas razões por que penso que não devemos bombardear os japoneses é que eles fizeram minha minivan.”

Dessa forma, ainda que amoral, o mercado premia a empatia – entre minorias étnicas, sexuais, religiosas. E isso pode ser facilmente corroborado pela história. Como diz o psicólogo canadense Steven Pinker:

A história sugere muitos exemplos nos quais a maior liberdade de comércio correlaciona-se com mais paz. O século XVIII viu uma calmaria nas guerras e uma ênfase no comércio, quando os alvarás e monopólios régios começaram a dar lugar a mercados livres, e a mentalidade protecionista do mercantilismo deu lugar à mentalidade do ganho para todos do comércio internacional. Muitos países que se retiraram do jogo das grandes potências e suas consequentes guerras, como a Holanda no século XVIII e Alemanha e Japão na segunda metade do século XX, canalizaram suas aspirações nacionais para o objetivo de se tornarem potências comerciais. As tarifas protecionistas dos anos 1930 acarretaram um declínio no comércio internacional e, talvez, um aumento nas tensões internacionais. A atual cortesia entre Estados Unidos e China, países que têm pouco em comum além do rio de produtos manufaturados numa direção e dólares na outra, é um lembrete recente dos efeitos conciliadores do comércio.”

Em resumo, mercados são amorais e privilegiam a convivência pacífica entre as pessoas – quase todas interessadas na mesma coisa: servir umas às outras, independentemente de suas identidades, para receber dinheiro por isso. Não por acaso, como aborda o próprio Pinker em The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined, desde a Revolução Industrial e do desenvolvimento da sociedade capitalista, países simpáticos à economia de mercado testemunharam uma queda brusca em todos os cenários de violência (seja quando falamos de guerras civis ou internacionais, atos de terrorismo, abuso contra mulheres, gays, crianças ou animais). Pense nisso na próxima vez em que tentar tirar onda com um liberal ao citar sua hipotética ingenuidade na crença de que o mercado é bonzinho.

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