domingo, 4 de outubro de 2015

O fundamentalismo cristão

Eduardo Arens

O fundamentalismo cristão admite a Bíblia como única autoridade para suas doutrinas e costumes. Afirma a autoridade exclusiva da Bíblia, sustentando que é Palavra de Deus no sentido estrito do termo: provém diretamente de Deus, portanto, livre de todo erro e de todo condicionamento. Para o fundamentalista, Bíblia, Revelação e Palavra de Deus são sinônimos.

Para o fundamentalista, a afirmação da absoluta e da total inerrância e infalibilidade da Bíblia é de capital importância. Disso dependem, em sua opinião, a autoridade da Bíblia e sua total confiança nela e, em última instância, em Deus mesmo. Quando se admite que a Bíblia contem erros – argumentam – , então não merece nossa total confiança como norma suprema, e não podemos estar seguros do que Deus quer de nós e para nós. Para o fundamentalista, o texto da Bíblia é a única norma objetiva (por ser escrita) que ele aceita, e essa norma vem de Deus mesmo, que a “ditou” aos escritores. Visto que tem Deus como seu autor, a Bíblia não pode ter erro algum, também em matéria de história e ciência. Esta é a tese “fundamental” sobre a qual repousa a estrutura doutrinária do fundamentalismo cristão.

Na realidade, no entanto, o fundamentalismo não parte da Bíblia mesma, embora afirme insistentemente que o único fundamento é a Bíblia. De fato, parte de um ideia que tem a respeito da Bíblia: a ideia de que a Bíblia é o que foi “ditado” por Deus, portanto, livre de todo erro possível, e de que é a Palavra de Deus dirigida a ele e que é inalteravelmente válida tal como está escrita, para todos os séculos.

Obviamente, para o fundamentalista, sua interpretação da Bíblia é a única válida e legítima, e, portanto, toda outra interpretação tem de ser errônea.
Mas fundamentalistas nem sempre são literalistas. Antes, adaptam passagens e doutrinas e, com base nisso, interpretam literal ou figuradamente. O fundamentalista crê que a única fonte de referência é a Bíblia. Não admite nem reconhece o papel da tradição, quer dizer, a correlação entre a Bíblia e tradição.

O fundamentalista interpreta textos bíblicos, utilizando outros textos bíblicos. Mas esses textos já foram interpretados previamente segundo os cânones dados por seu líder ou guia ou instituição, não pela Bíblia!

Em ultima análise, o fundamentalista não se baseia na Bíblia, mas em sua ideia a respeito da bíblia e nas orientações do líder ou denominação. Crê que suas ideias correspondem às ideias dos tempos bíblicos, sem dar-se conta de que suas ideias são produto do desenvolvimento do cristianismo, dos conhecimentos que adquirimos com o tempo e de nossa visão ocidental (não palestina) da vida e do mundo. A ideia de que a Bíblia é toda ela por igual Palavra de Deus, a ideia de que Deus de alguma maneira ditou a Bíblia, a ideia de que não contém erro algum e de nenhum tipo etc, não provém da Bíblia, mas da tradição posterior a ela, como também foi posterior a decisão do cânon. Nenhum texto explicita em que consistia a inspiração, nenhum texto diz que a Bíblia está livre de erros, e nenhum texto diz qual deveria ser o cânon, o fundamentalista é, então, em boa medida, um ingênuo.

Além do mais, o fundamentalista, baseia-se nas interpretações dadas por seu líder espiritual ou instituição, as quais ele aceita cegamente como verdades absolutas e inquestionáveis, quase como se viessem de Deus mesmo – costumam ser tidas como revelações. Assim, por exemplo, os adventistas leem a Bíblia a partir das interpretações e doutrinas adiantadas por Elena White, e as Testemunhas de Jeová leem a Bíblia através dos olhos da “Watchtower Society”, os protestantes por sua denominação, e assim vai…  Não é, então, uma leitura e interpretação a partir da própria Bíblia.

O fundamentalismo, que é característico de certos ramos do protestantismo, de muitas seitas, e que se encontra em alguns “círculos de estudo bíblico”, é eminentemente doutrinário a partir de seu fundamento, e não permite o questionamento crítico. Está seguro de compreender a bíblia corretamente e de possuir a verdade, que é incapaz de escutar ou de ler estudos críticos sobre a Bíblia (a menos que o líder os aprove), desqualificando-os como ímpios, racionalistas, prejudiciais para a fé. Qualquer questionamento é imediatamente rejeitado com a acusação de que se está negando que a Bíblia é Palavra de Deus, e para apoiá-lo saem a brandir, em poucos segundos, três ou quatro textos bíblicos – desencarnados de todos os seus contextos (literário, situacional, cultural) – que supostamente fundamentam suas doutrinas. “A Bíblia diz” vem a ser equivalente a “Deus mesmo diz, e não se pode questionar”. O fundamentalista é simplesmente incapaz de discutir a respeito da Bíblia ou de alguma passagem bíblica sem brandir uma meia dúzia de textos que, além do mais, devem ser interpretados inquestionavelmente à sua maneira de entendê-los. É um circulo vicioso.

Em poucas palavras, o fundamentalista se move na base de um conjunto de textos que considera chaves, e subordina ou “esquece” os demais, especialmente palavras que aparecem na boca de Deus ou de algum profeta. Essa priorização de certos textos certamente não vem da Bíblia: foi o líder que lha deu.

O Fundamentalista enche a boca de textos bíblicos, bem aprendidos, concatenados de maneira que se apoiem uns aos outros, quase em forma circular, e não sai deles.
Em seu recurso à bíblia, o fundamentalista concentra-se especialmente nas palavras, e vai em busca de doutrinas. Lê a Bíblia como um manual de doutrinas, especialmente éticas. E estas são válidas para todos os tempos. E por isso mesmo, não leva em conta questões de gêneros e composição literários, de situações históricas e culturais, de tradições orais etc. Não está consciente (ou nega) que se trata de um texto literário composto na antiguidade. Quando se trata de uma narração, tende a entendê-la como história, sem distinguir mito, lenda, saga, epopeia. Em poucas palavras, o fundamentalista crê que sua interpretação da Bíblia corresponde à intenção original, que é a Deus, não dos homens e, por isso, rejeita toda interpretação que seja produto de estudos críticos.

Para o fundamentalista, conhecer a Bíblia equivale a conhecer de memória o maior número de textos e a interpretação dada por seu líder. Isto ele sai a brandir nos “concursos bíblicos”. Sua fé está centrada nos textos mais do que na atuação histórica de Deus, por isso, costuma ser “biblicista”. Sua religião é do livro, não da história – como o islamismo. Sua ética, certamente, costuma ser igualmente fundamentalista: cumpre-se o que está escrito, porque é mandato divino – embora na prática omitam muitos mandatos. Alguns até pretendem viver como nos tempos bíblicos, dando um salto olímpico de alguns milênios.

O Fundamentalista não admite que tenha havido evolução, aprofundamento, adaptação da Palavra de Deus, quer dizer, não admite a tradição como processo de interpretação e de atualização (de vida). Passa diretamente de Deus (autor) ao texto e deste ao presente, como se tivesse sido escrito ontem e aqui.

Notoriamente, com frequência, a posição fundamentalista é uma ideologia que busca defender em nome do Deus da Bíblia certos valores tradicionais (sociais, econômicos, políticos, religiosos) diante dos questionamentos daqueles que pensam com espírito crítico. Por isso, exigem fé cega nos textos, nas interpretações e nos líderes, e não toleram questionamento algum.


Eduardo Arens


Nota: Tudo o que foi dito neste texto se encaixa perfeitamente ao fundamentalismo islâmico, judeu, hindu… enfim, para qualquer fundamentalismo religioso, não apenas o cristão.


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