segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Não, Dilma não embolsou R$ 2,3 trilhões. Isso é o que você precisa saber sobre esse dinheiro todo.

Felippe Hermes

A histórica rejeição por unanimidade das contas do governo Dilma Rousseff no Tribunal de Contas da União (TCU), pela primeira vez na história, terminou dando forma a uma acusação repetida a exaustão nos últimos meses, não muito bem clara para a maioria esmagadora da população brasileira: o crime envolvendo as pedaladas fiscais (ou fraudes contábeis, em bom português).

Após o anúncio, além do placar de 9×0, dois números chamaram a atenção. O relator do caso, ministro Augusto Nardes, apontou que as irregularidades atingiram a soma de R$ 106 bilhões apenas no ano de 2014 (sendo R$ 40 bilhões apenas nas pedaladas). Em outro momento, o ministro trouxe à tona o estarrecedor número de R$ 2,3 trilhões, referente a um déficit atuarial, acusando o governo Dilma de ter “feito sumir” este valor de seu balanço. Não demorou muito tempo para que o número circulasse em comparações com o esquema do Petrolão, que causou prejuízos de R$ 88 bilhões à Petrobras. Não faltaram acusações de que o Partido dos Trabalhadores embolsou esse dinheiro.

Neste caso, porém, as coisas não são exatamente o que parecem- e a ignorância econômica definitivamente não deve se tornar uma arma contra um governo cuja defesa está toda pautada em explorar a ignorância econômica alheia.

O atuarial da expressão refere-se às ciências atuariais, uma ciência que lida diretamente com o risco e é fundamental para estruturar questões relativas à previdência ou seguro, por exemplo. Fortemente focada em conhecimento da matemática, muitas vezes complexa e pouco acessível, as ciências atuariais são geralmente desconhecidas para a maior parte da população. Alguns conceitos, porém, são mais simples do que parecem e não requerem que você seja um grande conhecedor de estatística ou ministro de um Tribunal de Contas para entender. Um deles é exatamente o conceito de déficit atuarial.

Déficit atuarial nada mais é do que a soma do descompasso entre receitas e despesas de um regime previdenciário, e este é exatamente o caso da previdência brasileira. Baseada em 2 grandes grupos divididos em outros 2, a previdência pública brasileira é um grande problema com prazo para ser solucionado. Esta é a conclusão possível de se tirar do déficit apresentado pelo ministro.

O primeiro deles e mais amplo regime de previdência no Brasil é o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que inclui trabalhadores urbanos e rurais, e conta com mais de 24 milhões de beneficiários. O segundo e mais restrito, o Regime de Previdência Própria dos Servidores (dividido entre civis e militares), conta com pouco mais de 1 milhão de beneficiários.

Representando nada menos do que 42% dos gastos primários da União (excluindo-se despesas financeiras), a previdência brasileira possui um déficit de R$ 112 bilhões. Para o espanto de muita gente, porém, o maior déficit não está com os 24 milhões de beneficiários do INSS – sujeitos ao fator previdenciário e a recorrentes corrosões em seus benefícios. O déficit dos 670 mil civis e dos 270 mil militares é de cerca de R$ 62 bilhões, contra R$ 50 bilhões dos beneficiários do INSS. O descompasso apontado pelo ministro, portanto, é a soma destes déficits até o prazo do último beneficiário receber.

Mas então, o que há de errado na previdência brasileira? A grande questão para entender por que o ministro considera que este déficit deve ser assumido pelo governo reside justamente no fato da nossa previdência ser um regime em que quem contribui sustenta quem está aposentado, e assim sucessivamente. Ao contrário da maioria dos países, o dinheiro que você contribui para a previdência não é um dinheiro seu. Este sistema tem prazo limitado. Em 2000 haviam 11,5 pessoas contribuindo para cada beneficiário. Em 2060, a projeção é de que sejam 2,3 para cada beneficiário, tornando a conta inviável e forçando um aumento dos gastos de impostos para cobrir os rombos.

Não se trata, portanto, de um dinheiro que tenha sido mal gasto ou embolsado pelos membros do governo. Os tais R$ 2,3 trilhões não estão na conta de um membro do partido ou da própria presidente, mas sim em uma projeção futura de gastos não contabilizada no orçamento federal.
Trata-se de mais um caso inequívoco de como a ignorância é uma faca de dois gumes. Em outra ocasião, não faltou quem dissesse que o ex-governador de Minas, Aécio Neves, havia desviado R$ 4 bilhões da saúde no estado. O termo desviado foi notoriamente utilizado como roubo, quando na realidade se refere a um desvio de função. Os recursos foram utilizados em outra área que não aquela previamente determinada (algo que ocorre em mais de 2/3 dos estados brasileiros).

O que é possível fazer para resolver a questão? Durante décadas a previdência funcionou como um caixa extra para o governo. Milhões de trabalhadores contribuíam mensalmente para bancar poucos beneficiários, levando a diferença para a conta do governo, que passou a gastar os recursos sem se preocupar em poupá-los. Em boa parte dos países este modelo inexiste – substituído por outro, o modelo de capitalização, onde os recursos pagos à previdência vão para uma conta que tem por intuito gerar rendimentos para bancar a previdência futura.

Este é o modelo que o governo tem buscado adotar com os servidores (apesar da ampla rejeição de sindicatos que acusam o Planalto de privatizar a previdência).
Para os trabalhadores comuns, entretanto, a opção de poder escolher entre a mais eficiente forma de acumular recursos ainda é uma realidade distante. Os trabalhadores brasileiros continuam bancando um modelo ineficiente e que a cada ano impõem maiores restrições. A maior delas, o fator previdenciário, continua em vigor e é muitas vezes apontada como uma solução pelo governo. Trata-se de uma tentativa de reduzir os benefícios pagos para mascarar a realidade e manter as aparências de viabilidade do regime.

Os problemas apontados pelo ministro, porém, vão um pouco além deste. As pedaladas são uma realidade incômoda e põem em risco algo conquistado a duras penas no país: a responsabilidade fiscal. Pilar da bem sucedida política de crescimento adotada pelo país entre 2000 e 2009, a Lei de Responsabilidade Fiscal, apesar de não estar totalmente adaptada ao governo federal, serviu para balizar o comportamento esperado de um Estado moderno. Durante mais de um século as relações entre governos e bancos públicos foram as mais promíscuas possíveis. Caixa e Banco do Brasil serviram de base para a expansão descontrolada de gastos públicos e uma das maiores crises de inflação da história mundial.

A melhora nas práticas de gestão levaram o país a considerar irregular o uso de recursos de bancos públicos como recursos do governo, tornando-se assim crime o que foi realizado à exaustão durante o ano de 2014, quando Caixa e Banco do Brasil utilizaram dinheiro próprio para bancar gastos de benefícios como o Bolsa Família. Em suma, o governo atrasou os repasses à Caixa durante meses, deixando a conta no vermelho para ser coberta pelo próprio banco. Esse é, na essência, o legado positivo da rejeição das contas do governo pelo TCU. A decisão do tribunal põe um mais do que necessário freio às políticas expansionistas do governo que nos levaram à crise atual.  

Nenhum governo, afinal, está acima da lei e pode se utilizar de fraude para agir.



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