sexta-feira, 6 de março de 2015

Cuba - A longa marcha rumo ao socialismo

“Nem todos os membros da esquerda subscrevem as palavras de Danielle Mitterrand: ‘Cuba representa a síntese do que o socialismo pode realizar’, frase que constitui a mais arrasadora condenação do socialismo jamais proferida”.
(Jean François Revel, “A Grande Parada”, editora Biblioteca do Exército, 2001)

Por Carlos I. S. Azambuja
Parece não haver dúvida que o socialismo real em Cuba está se desfazendo. A cada dia vêm sendo feitas maiores concessões ao capitalismo. Concessões definidas pelos camaradas FIDEL e RAUL como absolutamente necessárias para continuar a longa marcha rumo ao socialismo.

Como, então, explicar por que em Cuba, ao contrário do que ocorreu na União Soviética sob Gorbachev, o capitalismo ainda não tenha sido restaurado?

As diferenças entre a União Soviética e o Leste Europeu do final dos anos 80 e o que vem ocorrendo em Cuba, é que neste país não houve nenhum ascenso significativo das massas que questionasse, consciente ou inconscientemente, o partido único, o Estado-Patrão e a economia centralmente planificada. Ou seja, em Cuba vem sendo implantada uma espécie de perestroika (reestruturação), mas não a glasnost  (abertura), pois os chamados dissidentes continuam a ser presos e condenados e muitas pessoas continuam a deixar o país agarradas a pneus.

Fidel e Raul têm levado adiante um duplo discurso, e esse fato já foi detectado pela imprensa. Há 8 anos - 5 de novembro de 1996 a Folha de São Paulo escreveu: “Um documento do Ministério das Finanças e Preços de Cuba revela que a economia em curso no país está causando uma redistribuição e concentração da renda em uma minoria da população. Obtido com exclusividade pela Folha, o documento demonstra que o governo comunista de Cuba adota dois discursos diferentes sobre as reformas no país. Em público, o Estado comandando por Fidel Castro evita assumir a recondução de Cuba a hábitos capitalistas. ‘Queremos o capital, não o capitalismo’, diz Fidel. Mas, internamente, o retorno ao capitalismo é dado como seguro”.

Por muitos anos, a debilidade estrutural da economia cubana - a monocultura baseada no cultivo da cana de açúcar - foi remendada pela ex-URSS, interessada em manter um aliado, durante a Guerra-Fria, às portas dos EUA. Todavia, a ajuda soviética apenas reforçou essa debilidade, que se expressou de forma dramática quando o socialismo real foi desmontado na URSS e Europa Oriental, fazendo desaparecer a própria União Soviética. Devido a esse fato, o PIB cubano, entre os anos de 1989 e 1994 caiu 34,3% e as exportações anuais, que eram de US$ 5,3 bilhões, foram reduzidas a US$ 1,53 bilhões.

Desde 1977 vêm sendo feitas concessões à economia de livre mercado. No campo, entre 1977 e 1983, o número de cooperativas aumentou de 44 para 1472, e a área de terra cultivada pelas mesmas, de 6 mil hectares para 938 mil hectares, tendo o número de agricultores cooperativados aumentado de umas poucas centenas para 82.611 (Carmelo Mesa Lago em seu livro “Breve História Econômica de Cuba Socialista”, Madri, 1994).

Todavia, a maior concessão à economia de livre mercado foi a introdução, em 1980, dos mercados livres camponeses, onde os pequenos agricultores, depois de entregar a parte correspondente do Estado, foram autorizados a vender os excedentes agrícolas a preços fixados pela lei da oferta e da procura.

Também nas cidades, em 1981, o governo tornou legal o trabalho autônomo em atividades como as de cabeleireiros, alfaiates, jardineiros, taxistas, eletricistas, carpinteiros, fotógrafos, mecânicos, etc, e também o trabalho de profissionais liberais, como arquitetos, engenheiros, médicos e dentistas, bem como relaxou algumas leis anteriores de restrição à construção de moradias, o que fez com que, entre os anos de 1981 e 1985, dois terços das moradias construídas fossem particulares.

Entretanto, em 1986, quando Gorbachev deu início às reformas que levaram ao desmantelamento da União Soviética, Fidel Castro deflagrou o chamadoProcesso de Retificação, que praticamente eliminou o mercado e qualquer tipo de iniciativa privada, reduziu o número de trabalhadores autônomos e restringiu a construção, a venda e o aluguel de casas particulares. Essas medidas fizeram com que, já em 1988, o setor agrícola estatal ocupasse cerca de 92% de toda a terra cultivável e que a proporção de trabalhadores autônomos baixasse de 1,2% da força total de trabalho para 0,7%.

Paralelamente, no entanto, o governo aprovava o Decreto-Lei nº 50, que fomentava o investimento de capitais estrangeiros em condições extremamente favoráveis para estes. Enquanto isso, médicos e professores continuam a receber um salário mensal equivalente a 15 dólares.
Processo de Retificação acabou em um fracasso total, fazendo com que a economia cubana entrasse na pior crise de sua história. A partir de 1990, a deterioração da economia recebeu um impulso fundamental, face às conseqüências do desmanche do socialismo real. Nenhuma das metas de produção foi cumprida. Na produção de petróleo, níquel, aço, adubos, sapatos, cítricos, tabaco, têxteis, leite, pescado e cerveja, os resultados ficaram entre 20% e 64% aquém do previsto pelos burocratas do partido e do Estado.

No que diz respeito às moradias, Fidel Castro, no início do Processo de Retificação definiu que as brigadas de construção edificariam 100 mil unidades por ano. Todavia, no período de 1986-1989, as tais brigadas construíram somente 18.315 moradias.

O valor das exportações cubanas, nesse mesmo período de 1986-1989, diminuiu em 10%. O déficit entre 1985 e 1989 passou de US$ 3,6 bilhões para US$ 6,2 bilhões e a dívida externa alcançou US$ 37,6 bilhões, a mais elevada da América Latina per capita.

A produção de açúcar em 1990, que havia sido prevista em 9,5 milhões de toneladas, alcançou apenas 8 milhões e, nos anos seguintes, foi baixando: 7.623 em 1991, 7.030 em 1992 e 4.280 em 1993. Esta última foi a colheita mais baixa dos últimos 30 anos. Mas a de 1995 seria ainda muito pior: 3,3 milhões de toneladas!

No período de 1989-1992 as importações da URSS/Comunidade dos Estados Independentes caíram em 90%, enquanto as exportações diminuíram 93%. O PIB, no período 1989-1994 caiu 34,3% e as exportações, que eram de US$ 5,3 bilhões, baixaram para US$ 1,53 bilhões.

Diante desse quadro caótico, nos anos 90 o governo cubano passou a editar, uma após outra, uma série de medidas em direção ao livre mercado. Esse trabalho de mudança de rumos foi resenhado da seguinte forma pelos economistas do CEA-Centro de Estudos da América (entidade subordinada ao Departamento América do Comitê Central do PC Cubano):

          - abertura progressiva da economia ao capital estrangeiro;
          - presença crescente no país das sociedades anônimas, após 1990;
          - fim do monopólio estatal do comércio exterior, atividade anteriormente controlada em sua totalidade pelo MINCEX-Ministério do Comércio Exterior, que passou a ser assumida diretamente por um crescente número de empresas, estatais e privadas;
          - mudança na estrutura organizativa do Estado, que foi sendo adequada às necessidades impostas pela dinâmica dos investimentos estrangeiros;
          - mudanças na Constituição, sendo a mais importante a reforma constitucional de 1992, que introduziu modificações relevantes, como a redefinição do regime de propriedade socialista, a definição de outras formas de propriedade e as variações a respeito do regime de planificação econômica;
          - a despenalização da posse de divisas, legalizando a posse e operação de divisas estrangeiras, em todo o território, para os cidadãos cubanos;
          - reforma parcial de preços e do sistema de contabilidade, no sentido de conseguir um maior alinhamento com os preços internacionais e uma modificação no sistema nacional de contabilidade, objetivando a sua simplificação, flexibilização e compatibilização com as práticas internacionais;
          - criação de Unidades Básicas de Produção Cooperativa, a partir de setembro de 1993, e estabelecimento de um Mercado Agropecuário em outubro de 1994;
           - adoção de uma nova lei de impostos, em setembro de 1994, estabelecendo novos impostos e novas contribuições, bem como modificando as já existentes. Uma orientação cada vez mais afinada com a tendência a uma política econômica orientada para a diversificação e o funcionamento dos mercados;
          - nova Lei de Investimentos Estrangeiros, em setembro de 1995, com o objetivo de “incentivar o investimento estrangeiro no território da República de Cuba, para atividades lucrativas (...)”. O artigo 3º dessa Lei assinala que os investimentos estrangeiros em Cuba “gozam de plena proteção e segurança e não podem ser expropriados, salvo que essa ação se execute por motivos de utilidade pública ou interesse social, com prévia indenização em moeda livremente conversível (...)”.
          O artigo 8º, no entanto, é mais sugestivo: garante ao investidor estrangeiro “a livre transferência ao exterior, em moeda livremente conversível, sem pagamento de impostos ou nenhuma outra taxa relacionada com a referida transferência”.

Essa lei autoriza investimentos estrangeiros em todos os setores da economia, com exceção da Saúde, Educação e Forças Armadas.

Atualmente, considerando toda essa série de leis, decretos-leis e portarias que descaracterizaram o socialismo real em Cuba, circula em muitas empresas transnacionais um Guia de Investimentos, editado em espanhol e inglês, intitulado “Cuba: Oportunidades de Investimentos”, que menciona algumas das vantagens para os investimentos na Ilha. Um dos itens constantes desse Manual considera que “Cuba é quase um paraíso fiscal (...). O imposto sobre os investimentos brutos que está vigente não se aplica aos investidores estrangeiros e às empresas mistas (...). O imposto sobre ingressos pessoais afeta as pessoas naturais de Cuba, mas dele estão isentos os sócios dirigentes e funcionários das empresas mistas”. O Manual também destaca que o custo da mão-de-obra em Cuba se situa em “níveis muito competitivos em termos internacionais", e que a força de trabalho “é o principal recurso do país”.

Os principais investidores em Cuba, pela ordem, eram, na época, Canadá, Espanha, França, México, Alemanha, Holanda, Inglaterra, Itália, Japão e Suécia. Cuba mantém, hoje, vínculos comerciais com cerca de 4 mil empresas de mais de 100 países, e na Ilha há mais de 600 escritórios de representação de empresas multinacionais.

Paradoxalmente, tudo isso faz com que o Estado cubano enfrente um momento difícil, obrigado a fechar algumas indústrias estatais que se tornaram ineficazes diante da mudança de mercados, e que eram a espinha-dorsal do chamado pleno emprego. Ou seja, de um sistema que teoricamente garantia o pleno emprego passou-se a outro, baseado na eficiência, com a conseqüente aparição do desemprego. Estima-se que nos próximos anos cerca de 400 mil pessoas deverão procurar trabalho em atividades privadas ou então se reciclar. A reciclagem, aliás, já teve início.

Após 56 anos, comemorados em janeiro de 2015, pode ser dito que o socialismo faliu em Cuba, e caminha celeremente, pelas mãos dos camaradas Fidel e Raul Castro, não para a sonhada utopia, com o fenecimento do Estado, conforme definido na doutrina científica, mas sim rumo à restauração do que a doutrina dizia combater: a chamada exploração do homem pelo homem.

Desmontar esse disparate autoritário sem que todo o edifício desabe sobre suas cabeças, “esse é o pesadelo e o dilema da classe dirigente cubana”,como escreveu Carlos Alberto Montaner, jornalista e escritor cubano, exilado na Espanha (jornal “O Estado de São Paulo”, 21 de dezembro de 1997).

Nesse contexto, o que mais resta?

Resta o discurso – apenas o discurso - da dignidade e da solidariedade. Mas, pode sentir-se digna uma pessoa que não pode ler o que deseja, não pode exprimir suas idéias, eleger seus governantes, escolher seus amigos, viajar para onde queira e não ter, sequer, papel higiênico para comprar e, mais recentemente, acessar a Internet?

Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
 

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