quinta-feira, 12 de junho de 2014

Para entender a linguagem da esquerda


por Carlos I. S. Azambuja

Os arrependidos do pós-socialismo real buscam freneticamente um certificado de que nunca foram socialistas e que tudo não passou de um equívoco político
“O sucesso do governo Lula é condicional para o despertar de uma nova esquerda no mundo. O sucesso do governo Lula é fundamental para que os valores que alimentaram as melhores utopias rejuvenesçam, floresçam e dêem novos frutos” (Resolução Política aprovada pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores dia 16 de março de 2003, www.pt.org).

O conhecimento dos conceitos básicos do Materialismo Histórico é considerado fundamental pelas esquerdas de todos os matizes, em todo o mundo, para a iniciação na doutrina científicado marxismo-leninismo. Esse conhecimento objetiva dotar os futuros revolucionários do instrumental teórico mínimo necessário e ao estabelecimento de táticas e estratégias que conduzam à construção do socialismo, malgrado essa forma de Estado já tenha sido amplamente repudiada pelos povos que viveram sob ela.

Embora o socialismo, tal como sempre foi conhecido e posto em prática, tenha fenecido, alguns grupos de saudosistas, em todo o mundo, já optaram pela volta às origens, ao Manifesto Comunista, buscando refundar o comunismo, agora – dizem – livre dos desvios atribuídos a Stalin e a outros, acusados de desvirtuarem, na prática, os escritos de Marx e Engels.

Seria tempo, portanto, de recapitular alguns desses conceitos para, pelo menos, compreendermos um linguajar típico.

Classes Sociais são “grupos sociais antagônicos, pois um se apropria do trabalho do outro em virtude do lugar diferente que ocupam na estrutura econômica de um modo de produção determinado”. Esse lugar diferente é determinado pela forma com que cada grupo se relaciona com os meios de produção.

É evidente que o partido não se preocupa com o proletariado porque este esteja oprimido ou porque seja débil e sim, na medida em que é considerado, potencialmente, uma força. Seguindo esse raciocínio, quanto mais proletários existirem maior será a sua força como classe revolucionária, classe essa dirigida, obviamente pelo partido, força dirigente do processo.

Conjuntura Política é definida como “o momento atual da luta de classes em uma formação social”.

Formação Social é o conceito que designa “uma realidade concreta, complexa, impura, como toda realidade”. Assim como toda totalidade social concreta, historicamente determinada, aFormação Social é composta por uma estrutura econômica, uma estrutura ideológica e uma estrutura jurídico-política.
Força Social é a expressão empregada para analisar a ação das classes ao nível da conjuntura política.

Em um processo revolucionário existem sempre três tipos de forças sociais: Forças Motrizes, Força Principal e Força Dirigente. Forças Motrizes são as constituídas pelos grupos sociais que participam de forma ativa no processo revolucionário; Força Principal é a constituída pelo grupo social que representa a Força Motriz mais numerosa; Força Dirigente é a constituída pelaForça Principal que dirige o processo revolucionário.

Para dirigir o processo revolucionário não é obrigatoriamente necessário ser a Força Motriz mais numerosa, uma vez que o fundamental não é o seu número e sim o seu papel político, a capacidade de tomar a iniciativa e formular metas adequadas a cada etapa.

A Força Principal não deve ser confundida com a Força Dirigente da revolução.
Luta de Classes é o enfrentamento entre duas classes antagônicas – a dos oprimidos e a dosopressores – que lutam por seus interesses. A Luta de Classes dá-se em três níveis: econômico, político e ideológico.

Formas de Lutas são as distintas características que podem assumir um tipo de luta: legal ou ilegal; pacífica ou não pacífica. Diz a doutrina científica que o Partido (com inicial maiúscula, para se diferenciar dos partidos burgueses) é quem determina, em cada momento, qual forma de luta deve ser priorizada e como as demais formas de luta devem subordinar-se a ela. A Forma de Luta a ser empregada depende do nível de consciência e de organização das massas, bem como da correlação de forças. A única questão é determinar quando e em que situação se torna necessário recorrer a esta ou aquela Forma de Luta. Isso é determinado pelos luminares encastelados na nomenklatura partidária.

A Tática de qualquer partido comunista consiste em propor às massas as formas concretas de ação julgadas úteis numa conjuntura objetiva definida.
Situação Revolucionária é o conjunto de fatores objetivos necessários para o desencadeamento de uma revolução. Diz-se que uma Situação Revolucionária é uma acumulação e exasperação de contradições históricas que se fusionam em uma unidade de ruptura.

As Condições Objetivas de uma revolução são definidas pela impossibilidade das classes dominantes em manter, sem reformas ou transformações, as formas de sua dominação. AsCondições Objetivas são dadas por uma crise na política da classe dominante, produzindo rupturas pelas quais aflora a indignação das classes dominadas e oprimidas, resultando em um considerável aumento das atividades das massas, empurradas e dirigidas pelo Partido.

Condições Subjetivas são a capacidade do Partido de realizar ações revolucionárias de massas suficientemente vigorosas para depor o antigo governo, que, segundo a doutrina, jamais cairá se não for feito cair.

Economicismo é a teoria expontaneísta que reduz a consciência de classe a um simples reflexo das condições econômicas. O Economicismo nega, na prática, o caráter de vanguarda doPartido, sendo considerado um desvio do marxismo porque sustenta ser a luta econômica a única Forma de Luta válida nas situações onde as Condições Objetivas não estejam ainda maduras. Todavia, as Condições não estarão nunca maduras se o Partido renunciar a levar em conta um dos fatores fundamentais para que isso ocorra: a organização política revolucionária do proletariado.

O chamado Esquerdismo, considerado por Lênin como a doença infantil do comunismo, tem como características:

- no plano ideológico, como conseqüência de uma visão deformada da conjuntura, o desejo de ver realizada a revolução, de qualquer maneira, confundindo anseios pessoais com a realidade objetiva e repetindo mecanicamente, vulgarizando-as, palavras-de-ordem radicais, válidas somente para determinadas situações históricas;

- no plano organizativo sua expressão é o acentuado individualismo, que se manifesta pela negativa em aceitar o centralismo democrático do Partido da classe operária;

- no plano de direção, o esquerdismo se expressa no que diz respeito à estratégia revolucionária e em sua incapacidade de distinguir as possíveis diversas etapas da revolução.

Finalmente, a doutrina científica define o Esquerdismo como “um desvio voluntarista, subjetivista, da teoria marxista da História, que prioriza o expontaneísmo das massas, homens ou pequenos grupos de revolucionários e deixa em segundo plano as tarefas de organização do partido, capazes de mobilizar as massas”.

Pode ser dito que “as melhores utopias” – citação da Resolução do PT – caracterizam a cobiça do impossível. O termo “utopia” é freqüentemente utilizado como sinônimo de irrealizável e foi utilizado por um Santo da Igreja Católica - Tomas Morus, degolado em 1535 por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra - para referir-se à sua fantasia sobre a ilha da felicidade, sua utopia.

Depois da constatação de Achille Ochetto, Secretário-Geral do Partido Comunista Italiano, em 1987, dois anos antes da queda do Muro de Berlim – “il comunismo é finito”! -, os marxistas mais fervorosos passaram a substituir o nome original de sua profissão de fé. Já não se proclamam marxistas ou comunistas. Tornaram-se cavaleiros andantes da utopia que é agora sua fé, o santo e a senha de seus compromissos políticos.

Herbert José de Souza, o Betinho, militante que viveu vários anos exilado, que foi dirigente da Ação Popular e do Grupo dos Onze, também constatou, anos depois, que “il comunismo é finito”. Vejam como ele analisou os ainda esquerdistas, em setembro de 1995: “São como cadáveres insepultos, vagando por aí. A maioria dos grupos que se dizem de esquerda são igrejinhas, seitas, um bando de loucos e dogmáticos” (livro “No Fio da Navalha”, editora Revan).

Nesse sentido, deve-se reconhecer que a União Soviética e os países do Leste da Europa prestaram um grande serviço à humanidade: comprovaram, na prática, que o socialismo não funciona.

Agora, na era do pós-socialismo real, são muitos os políticos e os partidos de esquerda dispostos a um boca-a-boca para ressuscitar o marxismo-leninismo que fazem fila no guichê onde são cadastrados os arrependidos. Ali, entregam os termos e expressões que até aqui utilizavam, no afã de receberem o cobiçado carnê de não-mais-comunistas e reconhecendo os imensos desatinos cometidos por outros marxistas.

Assiste-se a uma liquidação de saldos de incêndio da ideologia gestada pela teoria científica. Os que aproveitam essa liquidação adquirem a baixo custo quaisquer desses retalhos e, mediante o recurso de agregar-lhes o singelo prefixo neo e submetê-los a uma aparente reciclagem, os introduzem novamente no sofisticado mercado de consumo ideológico sob renovadas etiquetas.

Graças a essa avalanche de arrependidos, a democracia vem sendo transformada em uma transnacional de amplíssimo espectro. Os que até ontem defendiam o socialismo – ou o socialismo democrático -, os movimentos populares e o Estado Leviatã, adotam hoje o discurso dos recursos limitados, do status-quo neoliberal e da política da postergação dos salários e das aposentadorias como forma de alinhar a economia, como vem fazendo o partido dito dos trabalhadores.

Alguém já disse que o PC Polonês, que tinha a pomposa denominação de Partido Operário Unificado Polonês (POUP), no final da década de 80, quando o fim do socialismo real já era um fato, introduziu um artigo em seus estatutos, que dizia: “Todo militante que trouxer um novo membro para o partido será dispensado de pagar sua contribuição; aquele que trouxer dois novos militantes poderá abandonar o partido; e o que conseguir três ou mais militantes receberá um certificado de que nunca pertenceu ao partido”.

Os arrependidos do pós-socialismo real buscam freneticamente um certificado de que nunca foram socialistas e que tudo não passou de um equívoco político. Até mesmo uma alta autoridade desta nossa terra Brasilis declarou recentemente que “nunca foi de esquerda”: “Todo mundo sabe que nunca aceitei o rótulo de esquerda” (Lula, dia 27 de agosto de 2002, em Caracas).

Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
Transcrito do www.alertatotal.net/

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